24 de abril de 2011

Havia Séculos

Imagem da NASA
"Havia séculos
e eram florestas sobre florestas escritas.
O canto cantava: era o incêndio do vento

folheando a memória da terra

essa maranha de raízes aéreas que nasciam enterrando
mais fundo as árvores anteriores;
essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas,
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;
esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz
que atrasando-se recorta
estas estranhas esculturas do tempo:
os poemas selvagens

o máximo excesso de uma rosa aquática e frágil
sempre a nascer desfiladeiros
e falésias, fendas, quebradas, ravinas
vulcões que deflagram em écrans sucessivos

Havia séculos
e o cinema dos astros
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;
punha em música a infinita noite dos versos que longamente
escutam
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão
até estes anfiteatros que os desertos invadem.

Havia séculos
e
atravessando as ruínas dessa terra quente, as páginas
de água dessa rosa alucinada
havia esse:
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso
a verso, procura ainda alguém. E assim
era de novo o início.

A grande migração das imagens — havia séculos —
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos

sem paz e sem lei, sem amos nem destino."

Manuel Gusmão, em  Migrações do Fogo, Editorial Caminho, Lisboa, 2004, obtido daqui

O poeta e ensaísta  Manuel Gusmão venceu o Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho, criado pela Associação Portuguesa de Escritores (APE) e Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, pela obra Tatuagem Palimpsesto.  O prémio é entregue no dia 29 de Abril em Vila Nova de Famalicão.

1 comentário:

A Palavra Mágica disse...

Benjamina,

Passo para desejar uma Feliz Páscoa!

Beijos!
Alcides