31 de maio de 2010

Está visto que a guerra é um negócio

"Está visto que a guerra é um negócio de primeira ordem, talvez seja mesmo o melhor de todos a julgar pela facilidade com que se adquirem do pé para a mão milhares e milhares de bois, ovelhas, burros e mulheres solteiras, a este senhor terá de chamar-se um dia deus dos exércitos, não lhe vejo outra utilidade, pensou caim, e não se enganava. É bem possível que o pacto de aliança que alguns afirmam existir entre deus e os homens não tenha mais que dois artigos, a saber, tu serves-nos a nós, vocês servem-me a mim. Do que não há dúvida é que as coisas estão muito mudadas. Antigamente o senhor aparecia à gente em pessoa, por assim dizer em carne e osso, via-se que sentia mesmo certa satisfação em exibir-se ao mundo, que o digam adão e eva, que da sua presença se beneficiaram, que o diga também caim, embora em má ocasião, pois as circunstâncias, referimo-nos, claro está, ao assassínio de abel, não eram as mais adequadas para especiais demonstrações de contentamento. Agora, o senhor esconde-se em colunas de fumo, como se não quisesse que o vissem. Em nossa opinião de simples observadores dos acontecimentos, andará envergonhado por algumas tristes figuras que tem feito, como foi o caso das inocentes crianças de sodoma que o fogo divino calcinou."

José Saramago, em "Caim", 2009 (Imagem: óleo sobre tela de Ticiano "Caim e Abel", séc. XVI)

24 de maio de 2010

O desassossego de Jesus em Pessoa

"Só o desassossego salva, aprendi-o com Cristo antes de o ter reaprendido com Pessoa."

Inês Pedrosa, em "Expresso/Única - No altar dos livros", de 22 de Maio de 2010


"O guardador de rebanhos VIII

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
(...)
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
(...)
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
(...)
Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?"

Alberto Caeiro, 1914 (poema completo aqui, imagem daqui)

22 de maio de 2010

Hands

Já tem cerca de doze anos, mas continua a ser uma bela música. Ouvi-a ontem no final de um episódio de "Casos Arquivados" e lembrei-me de a procurar e partilhar por aqui.



(Desculpem a publicidade - cliquem no X para a interromper, mas esta versão é a que tinha melhor qualidade)

10 de maio de 2010

Depois do silêncio

"Depois do silêncio, aquilo que mais aproximadamente exprime o inexprimível é a música."

Aldous Huxley


2 de maio de 2010

Poema à mãe

"No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido no fundo dos teus olhos.

Porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa:
esqueceste que as minhas pernas cresceram
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim
e deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves."

Eugénio de Andrade

(óleo sobre tela de Arlete Salgado - minha querida mãe, 2004)