Armazém de pedacinhos
2 de julho de 2025
1 de julho de 2025
1 de abril de 2023
Deus disse (Manoel de Barros)
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.»
Manoel de Barros
Manoel de Barros (1916-2014) foi um grande poeta brasileiro.
«Manoel cria uma relação única com a linguagem e o mundo. Uma linguagem que desobedece, a seu modo, e que tem um mundo concreto que brinca a seu modo. Enfim, um poeta singular!
“O que escrevo resulta de meus armazenamentos ancestrais e de meus envolvimentos com a vida. Sou filho e neto de bugres, andarejos e portugueses melancólicos. Minha infância levei com árvores e bichos do chão. Penso que a leitura e a frequentação das artes desabrocha a imaginação para um mundo mais puro. Acho que uma inocência infantil nas palavras é salutar diante do mundo tão tecnocrata e impuro. Acho mais pura a palavra do poeta que é sempre inocente e pobre”. – Manoel de Barros.»
Fonte: Fundação Manoel de Barros
30 de abril de 2022
Que a violência acabe
«Que a violência acabe Que as armas perto de nós matando se calem finalmente
Tanto sangue tingiu as nossas ruas E que valeu o sangue?
Porém em nosso nome Nós querendo Nós ansiando a paz dos vizinhos bons negócios se fazem
Exportamos armas para longe
Os melhores carros de combate do mercado Relação preço qualidade
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Ilustração de José Maria de França Machado, no livro referido |
No céu muito azul não há sangue vermelho
Na terra cor de trigo maduro
só na próxima primavera as papoilas surgirão
Da cor do sangue
A terra que absorve o sangue A terra que filtra o sangue
A terra onde os vivos e os mortos um só corpo são
Terra aonde regressam os violentos Terra aonde tombam
Aqueles que abrem o peito aos violentos»
Cáceres, 23-25 outubro 2010
José Carlos Costa Marques, em "Uma Voz Entre Vozes", Edições Afrontamento, Maio de 2018
14 de abril de 2020
1 de fevereiro de 2020
Amar
Amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
Sozinho, em rotação universal, senão
Rodar também, e amar?
Amar o que o mar traz à praia,
O que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
É sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
O que é entrega ou adoração expectante,
E amar o inóspito, o áspero,
Um vaso sem flor, um chão de ferro,
E o peito inerte, e a rua vista em sonho,
E uma ave de rapina.
Este o nosso destino: Amor sem conta,
Distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
Doação ilimitada a uma completa ingratidão,
E na concha vazia do amor à procura medrosa,
Paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
E na secura nossa, amar a água implícita,
E o beijo tácito, e a sede infinita.»
Carlos Drummond de Andrade
20 de janeiro de 2020
É tarde
nenhum sono
repõe o que não vivi
agora
resta um único desfecho:
de novo acordar por dentro
e acordar sempre
até que volte a ser cedo.»
Mia Couto
Fonte: Facebook de Mia Couto
12 de janeiro de 2020
15 de maio de 2019
2 de janeiro de 2018
Tenho pena e não respondo
Mas não tenho culpa enfim
De que em mim não correspondo
Ao outro que amaste em mim.
Cada um é muita gente.
Para mim sou quem me penso,
Para outros — cada um sente
O que julga, e é um erro imenso.
Ah, deixem-me sossegar
Não me sonhem nem me outrem.
Se eu não me quero encontrar,
Quererei que outros me encontrem?»
Fernando Pessoa
26-8-1930
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). - 50.
12 de dezembro de 2017
Quando o amor chega
26 de março de 2017
E há poetas que são artistas
«E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre boa e é sempre a mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa.
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos,
E não termos sonhos no nosso sono.»
Alberto Caeiro , O Guardador de Rebanhos, XXXVI, em "Fernando Pessoa, Poemas escolhidos de Alberto Caeiro", Assírio & Alvim, edição 2013