22 de dezembro de 2010

Sejam felizes



Aos visitantes deste Armazém desejo um bom Natal e um óptimo ano de 2011. E uma palavra de agradecimento a todos os que me têm feito companhia através dos comentários. Obrigada!  

Façam o favor de serem felizes :)

16 de dezembro de 2010

Palavras para a minha mãe

"Palavras para a minha mãe

mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo.
a fotografia em que estou sentado ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho. gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras. sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste. somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes."

8 de dezembro de 2010

Imagine Direitos Humanos

Porque dia 8 de Dezembro faz 30 anos que morreu John Lennon.
Porque dia 10 de Dezembro se comemora o Dia Internacional do Direitos Humanos
Porque o sonho ainda não morreu.
Imagine que todos têm Direitos Humanos.

2 de dezembro de 2010

Os antigos

"Os antigos invocavam as Musas.
Nós invocamo-nos a nós mesmos.
Não sei se as Musas apareciam —
Seria sem dúvida conforme o invocado e a invocação. —
Mas sei que nós não aparecemos.
Quantas vezes me tenho debruçado
Sobre o poço que me suponho
E balido «Ah!» para ouvir um eco,
E não tenho ouvido mais que o visto —
O vago alvor escuro com que a água resplandece
Lá na inutilidade do fundo...
Nenhum eco para mim...
Só vagamente uma cara,
Que deve ser a minha, por não poder ser de outro.
É uma coisa quase invisível,
Excepto como luminosamente vejo
Lá no fundo...
No silêncio e na luz falsa do fundo...

Que Musa!........."

Álvaro de Campos, 3/1//1935

19 de novembro de 2010

Não custa mesmo nada....

Basta responder a 6 perguntas de "cultura geral" sobre a fome que se passa no mundo.

Por cada quiz do WFP (Programa Alimentar Mundial) respondido, um anónimo contribui com uma refeição escolar para uma criança com fome.

Como vê, não custa mesmo nada...

14 de novembro de 2010

Mundo enlouquecido




Tem cerca de uma década, esta música de Manu Chao (José-Manuel Thomas Arthur Chao, 1961) dedicada a Bob Marley.  E o mundo continua cada vez mais enlouquecido, enquanto alguns Mr. Bobby's nos tentam alertar ao mesmo tempo que alegrar com suas músicas. Valha-nos a arte!

9 de novembro de 2010

Escolas contra a fome

Imagem de APEAJIEC
A fome alastra pelo mundo fora, em países afectados pelas guerras, pelas perseguições, por terremotos, pelas cheias, secas e outras consequências das alterações climáticas, pela irresponsável e criminosa má governação e má distribuição de recursos.

Mas alastra também, aqui, em Portugal, com as instituições de solidariedade social a não terem mão a medir com o assustadoramente crescente número de pessoas a precisarem de ajuda para se poderem alimentar. Quantas crianças não têm como únicas refeições aquelas que tomam na escola, como relata o artigo de ontem no Expresso: Escolas lutam contra a fome

Numa altura de crise de valores que nos levou à crise económica, e em que os governantes insistem em fazer os que menos têm, e que menos culpa têm, pagar as dívidas que contraíram e o dinheiro que torraram em investimentos desnecessários, em obras que custam o dobro do suposto, e em ordenados e reformas a gestores públicos impensáveis nos países ricos, cabe aos municípios e às comunidades locais fazer um esforço para colmatar as necessidades dos mais afectados.

"A situação de pobreza começa a ser dramática e um pouco por todo o país há escolas que já abrem os seus refeitórios ao fim-de-semana para que os alunos mais carenciados possam almoçar. Deixaram de ser só as Misericórdias, a Cáritas ou outras instituições de solidariedade a responder às necessidades dos mais pobres e desprotegidos. As escolas conhecem e vivem este enorme flagelo. Confrontam-se, no dia-a-dia, com grupos de crianças que chegam à escola sem o aconchego de uma refeição, relatam vários professores e directores de agrupamentos de escolas. Por isso, a escola, que no cumprimento da sua função social assume um extenso leque de obrigações, passa a acumular também a de instituição de solidariedade social. As crianças comem não só à semana e ao fim-de-semana. Comem nas férias e as do Natal estão à porta. Os orçamentos das escolas são parcos. Os municípios, pelas competências e responsabilidades que sobre eles recaem quanto à educação, não se podem demitir. A si próprios devem exigir um maior rigor na utilização dos dinheiros públicos fazendo deles uma gestão humanizada." Edna Cardoso, professora, em O Povo Famalicense

8 de novembro de 2010

Prémio Dardos

«O Prémio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc... que em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, e suas palavras. Estes selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar o carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web» 

Por isso, agradeço a atribuição deste Prémio Dardos aqui ao Armazém de Pedacinhos pelo Miguel Pereira do blogue O Escondidinho, pelo Miguel Gomes Coelho do blogue Vermelho Cor de Alface, e pelo Porfírio Silva do Machina Speculatrix, pela gentileza e pela alegria que me deram ao manifestarem gostar deste blogue.

E como já se encontram cumpridas duas das regras do blogue (exibir a imagem do selo no blogue; e revelar o link do blogue que atribuiu o prémio) vou agora dar seguimento à 3ª regra (escolher 10, 15 ou 30 blogues para premiar), sabendo de antemão que uma boa parte deles já o receberam, e que muitos mais o merecem:
 

3 de novembro de 2010

Às minhas irmãs



"You are my sister, we were born
So innocent, so full of need
There were times we were friends but times I was so cruel
Each night I'd ask for you to watch me as I sleep
I was so afraid of the night
You seemed to move through the places that I feared
You lived inside my world so softly
Protected only by the kindness of your nature
You are my sister
And I love you
May all of your dreams come true
We felt so differently then
So similar over the years
The way we laugh the way we experience pain
So many memories
But there's nothing left to gain from remembering
Faces and worlds that no one else will ever know
You are my sister
And I love you
May all of your dreams come true
I want this for you
They're gonna come true (gonna come true)"

21 de outubro de 2010

arquitectura da ecologia

Imagem de Designers' Block UK
"arquitectura da ecologia 

houvesse uma árvore em mim
e as suas folhas enchessem o meu peito,
e o meu corpo se colorisse discreto
ao alcance de um verde perfeito

e por natureza estivesse tudo assim
como dentro dos homens fosse certo
haver um amor pelas coisas sem fim
ter o céu e a terra mais perto

e saber o que sente a chuva e o escuro
e até ter a percepção incrível de insecto
amando todas as coisas para futuro
ser com a natureza um arquitecto"

O poema que antecede é de valter hugo mãe, e é a letra de uma canção de Paulo Praça (interpretada pelo próprio em 2007 no vídeo abaixo), que faz parte do CD "Dobro dos Sentidos", onde a gravou em dueto com Rui Reininho (fonte: revista Visão Verde de 14/10/2010).

15 de outubro de 2010

Filme do Desassossego

Vi esta noite o Filme do Desassossego, que anda em digressão pelos salas de espectáculo do país, pela mão do seu realizador, João Botelho, que o apresenta. Não conseguia imaginar como seria possível fazer um filme a partir do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares/Fernando Pessoa.  Agora percebi que se pode fazer uma obra de arte a partir de outra, sem a estragar. 

Ficam aqui no armazém alguns segundos de beleza.  Deixo também a ligação para um texto de Daniel Oliveira no Arrastão, de há um mês atrás, que subscrevo inteiramente. Adigressão está no site oficial. Hoje, dia 15, estará em Braga, no Theatro Circo, com sessões às 14h e às 21h30.









3 de outubro de 2010

Tarakihi

A soprano neozelandesa Kiri Te Kanawa, considerada como como das melhores cantoras líricas do mundo, em 1999 gravou um disco com músicas tradicionais da Nova Zelândia "Maori Songs", entre as quais Tarakihi.

26 de setembro de 2010

Esvanecimento

"E Navaia se iluminou de infâncias. Me apertou a mão e, juntos, fomos entrando dentro de nossas próprias sombras. No último esfumar de meu corpo, ainda notei que os outros velhos desciam connosco, rumando pelas profundezas da frangipaneira. E ouvi a voz suavíssima de Ernestina, embalando um longínquo menino. Do lado de lá, ficavam Marta Gimo e Izidine Naíta. Sua imagem se esvanecia, deles restando a dupla cintura de um cristal, breve cintilação de madrugada.
Aos poucos, vou perdendo a língua dos homens, tomado pelo sotaque do chão. Na luminosa varanda deixo meu último sonho, a árvore do frangipani. Vou ficando do som das pedras. Me deito mais antigo que a terra. Daqui em diante, vou dormir mais quieto que a morte."

Mia Couto, em "A Varanda do Frangipani" (imagem daqui, esvanecida)

17 de setembro de 2010

Mar Azul



Hoje passa um documentário «Cesária - Nha Sentimento», às 21:00, no Canal RTP 1 e no Canal RTP HD. Eu não posso, ver, mas vou gravar.

29 de agosto de 2010

Sobre a queima de livros

Imagem retirada do blogue Halto Hama
Lembram-se da triste notícia da queima de livros há uns meses atrás, salvo erro em Março? Tesouros de Eugénio de Andrade e Jorge de Sena, entre outros, que foram convertidos em pasta de papel? E de como a opinião pública se levantou e criticou (e muito bem)? E de como a Leya se desculpou porque mesmo para doar teria de pagar IVA (a desculpa era verdadeira, mas não era uma verdadeira desculpa, pois a acção foi indesculpável)?

Bom, pelo menos essa não será mais uma desculpa para queimar livros, pois no passado dia 23 de Agosto, saíu a lei Lei n.º 22/2010, que alterou o n.º 10 do artigo 15º do Código do IVA, que passou a ter a seguinte redacção:

"Estão isentas do imposto as transmissões de bens a título gratuito, para posterior distribuição a pessoas carenciadas, efectuadas a instituições particulares de solidariedade social e a organizações não governamentais sem fins lucrativos, bem como as transmissões de livros a título gratuito efectuadas ao departamento governamental na área da cultura, a instituições de carácter cultural e educativo, a centros educativos de reinserção social e a estabelecimentos prisionais.»

Valeu a pena o barulho!

28 de agosto de 2010

Agnes Gonxha Bojaxhiu

Nasceu há 100 anos, a 26 de Agosto de 1910 em Skopje, na Macedónia,e foi-lhe dado o nome de Agnes Gonxha Bojaxhiu. Em 1931, em Calcutá, decidiu passar a chamar-se Teresa.
Dedicou a sua vida a cuidar daqueles que mais precisavam, dos mais pobres e carentes da Índia. Incansavelmente. Viveu dando-se aos outros. A 5 de Setembro de 1997, deu por finda a sua missão nesta dimensão. Uma grande mulher. Uma grande lição.

"A falta de amor é a maior de todas as pobrezas"

15 de agosto de 2010

Jardins de Ponte de Lima

Este fim de semana visitei o Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima, que ocorre desde 2005, na mais antiga vila de Portugal. Este ano, o tema é "Kaos no Jardim". Para além dos jardins a concurso, há os jardins do local e o rio logo ali ao lado, com a sua praia fluvial, as esplanadas, a vista do centro histórico da vila, a possibilidade de agradáveis passeios a pé ou de bicicleta. Enfim, gosto muito de Ponte de Lima.

 Só me entristeceu o fumo que vinha dos lados de Arcos de Valdevez, que me relembrou as tristezas e desgraças que causaram os incêndios por este país fora. Especialmente as vidas que se perderam. Como a da heroína desconhecida Cristiana Josefa, de apenas 21 anos.


3 de agosto de 2010

State of Mind

Por sugestão das minhas filhas, que acharam muita piada à versão portuguesa, deixo aqui o videoclip da música "Empire State of Mind" de Jay-Z e Alicia Jeys, decicado a Nova Iorque, e a versão portuguesa de Rui Unas e Diana Piedade "Margem Sul State of Mind", dedicado a Almada.
Dedico ao amigo de Almada, Eduardo Miguel Pereira, autor do blogue Chegateaqui, com votos de melhoras, e com votos também de que não leve a mal a brincadeira, pois sei que muito estima a sua terra, e que Almada não é isso.



30 de julho de 2010

Caminhando para a luz

António Feio abandonou definitivamente o palco. Estou muito triste, não porque o conhecesse pessoalmente, pois não conhecia, mas porque a luminosa aura da sua alma nos chegava e apagava as nossas tristezas. Em Março passado publiquei aqui esta apresentação do filme Contraluz, de Fernando Fragata, com uma bela e importante mensagem de António Feio. Hoje volto a relembrar essa mensagem. Com um sincero agradecimento a António Feio pelos felizes momentos que proporcionou no palco e nos ecrãs.

Caminhando para a luz estás, António Feio. Palmas sonantes e prolongadas pela tua vida. Obrigada.

19 de julho de 2010

11 de julho de 2010

Estados

"Estados" - Curta metragem de Sofia Alves, Ana Salgado e António Fernandes, que ficou em terceiro lugar no concurso Videorun inserido no Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde 2010 (decorreu de 3 a 11 de Julho). No Videorun, os candidatos têm 48 horas para fazer um filme de 3 minutos, a partir do "lançamento" do tema, que foi, neste ano, "LÍQUIDO" - 24 horas para fazerem o argumento e filmarem e 24 horas para editarem e montarem.




No ano passado, a mesma equipa realizou a curta Influências no Videorun e ficou em segundo lugar. Mais uma vez parabéns à minha menina Sofia e seus amigos Ana e António. Que tenham muito sucesso! Merecem!

9 de julho de 2010

O meu chinês

A animação do francês Cédric Villain, “Mon Chinois” foi eleita pelo público como a melhor curta-metragem, no festival Anima Mundi 2009, no Rio de Janeiro e em S. Paulo.

7 de julho de 2010

Incompreendido

"Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me «compreenda», os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em éfígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo.

Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver. "


Fernando Pessoa, 1933, em "O Livro do Desassossego"

4 de julho de 2010

Visita da Mafalda

A Mafalda, apesar de já ter 45 anos continua aquela eterna menina contestatária, preocupada com o destino do mundo, que pensa pela sua cabeça e que não gosta de sopa.
Hoje veio visitar o Armazém de Pedacinhos, que completa um ano, e como é uma querida de bom coração trouxe um bolinho de aniversário. E ainda por aqui deixou algumas das suas tiradas (ou tiras?). Obrigada, Mafalda !
Mas sobretudo, obrigada a todos aqueles que visitaram este espaço durante estes 365 dias (e não sei como, mas foram mais de 11 mil visitas ...) e àqueles que seguem o blogue. E um agradecimento muito especial aos que participam e deixam o seu comentário, pois na verdade, são esses que fizeram com que este armazém ainda não tenha ido à falência. MUITO OBRIGADA.

27 de junho de 2010

A Maior Flor do Mundo

"E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?" José Saramago

Esta animação tem circulado muito pela internet, especialmente depois da partida de José Saramago. Já conhecia a versão com a narração em espanhol, agora a minha mãe descobriu a versão com narração em português. Aqui fica armazenada esta linda curta-metragem de animação baseada no livro «A Maior Flor do Mundo», de José Saramago. De Juan Pablo Etcheverry, com música de Emilio Aragón e narração de José Saramago. Produção de Continental Animación.

A Maior Flor do Mundo from Fundação Jose Saramago on Vimeo.

20 de junho de 2010

Rapsódia de Marrretas

Andei a pesquisar pela página dos Webby Awards e encontrei esta versão da Bohemian Rhapsody dos Queen, interpretada pelos Marretas. Que saudades duns e doutros! Boa semana.

18 de junho de 2010

Porque terá chegado a grande sombra

"Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. Traz um cajado ao ombro, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente caminham os porcos, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso. Tem uma maneira estranha de olhar para longe, mesmo se esse longe seja apenas a parede que tem na frente. A sua cara parece ter sido talhada a enxó, fixa mas expressiva, e os olhos, pequenos e agudos, brilham de vez em quando como se alguma coisa em que estivesse a pensar tivesse sido definitivamente compreendida. É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pode ser nunca. Recordo aquelas noites mornas de Verão, quando dormíamos debaixo da figueira grande, ouço-o falar da vida que teve, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia, do gado que criava, das histórias e lendas da sua infância distante. Adormecíamos tarde, bem enrolados nas mantas por causa do fresco da madrugada. Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?"

José Saramago, em "As Pequenas Memórias", 2006, Editora Caminho

10 de junho de 2010

Cio da Terra

Hoje, a Terra não está com o cio. Está é doente, cheia de febre, lutando contra uma infecção causada por um agente altamente infestante, que não é bactéria nem vírus, mas que se comporta como tal.

5 de junho de 2010

Hoje olho-te, mar

"Os meus passos de criança não deixavam pegadas,
a tua mão de areia e espuma
atraía-me para o teu seio
e eu partia numa braçada confiante
em direcção ao azul dos gritos das gaivotas,
esse azul reluzente ao nível dos olhos
que me chamava sempre mais longe
em busca da vaga que seria enfim minha.
Hoje olho-te, mar,
e lembro-me das lágrimas vertidas,
do sal amargo do regresso,
da tua cor cambiante
que me traz o esquecimento
e eu permaneço lá, apaziguada e feliz,
a olhar a maré do presente
que já não é para mim o chamamento
da tua mortal imensidão."

Isabel Meyrelles, Maio 1997, em "Isabel Meyrelles, Poesia" , Quasi Edições, 2004

31 de maio de 2010

Está visto que a guerra é um negócio

"Está visto que a guerra é um negócio de primeira ordem, talvez seja mesmo o melhor de todos a julgar pela facilidade com que se adquirem do pé para a mão milhares e milhares de bois, ovelhas, burros e mulheres solteiras, a este senhor terá de chamar-se um dia deus dos exércitos, não lhe vejo outra utilidade, pensou caim, e não se enganava. É bem possível que o pacto de aliança que alguns afirmam existir entre deus e os homens não tenha mais que dois artigos, a saber, tu serves-nos a nós, vocês servem-me a mim. Do que não há dúvida é que as coisas estão muito mudadas. Antigamente o senhor aparecia à gente em pessoa, por assim dizer em carne e osso, via-se que sentia mesmo certa satisfação em exibir-se ao mundo, que o digam adão e eva, que da sua presença se beneficiaram, que o diga também caim, embora em má ocasião, pois as circunstâncias, referimo-nos, claro está, ao assassínio de abel, não eram as mais adequadas para especiais demonstrações de contentamento. Agora, o senhor esconde-se em colunas de fumo, como se não quisesse que o vissem. Em nossa opinião de simples observadores dos acontecimentos, andará envergonhado por algumas tristes figuras que tem feito, como foi o caso das inocentes crianças de sodoma que o fogo divino calcinou."

José Saramago, em "Caim", 2009 (Imagem: óleo sobre tela de Ticiano "Caim e Abel", séc. XVI)

24 de maio de 2010

O desassossego de Jesus em Pessoa

"Só o desassossego salva, aprendi-o com Cristo antes de o ter reaprendido com Pessoa."

Inês Pedrosa, em "Expresso/Única - No altar dos livros", de 22 de Maio de 2010


"O guardador de rebanhos VIII

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
(...)
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
(...)
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
(...)
Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?"

Alberto Caeiro, 1914 (poema completo aqui, imagem daqui)

22 de maio de 2010

Hands

Já tem cerca de doze anos, mas continua a ser uma bela música. Ouvi-a ontem no final de um episódio de "Casos Arquivados" e lembrei-me de a procurar e partilhar por aqui.



(Desculpem a publicidade - cliquem no X para a interromper, mas esta versão é a que tinha melhor qualidade)

10 de maio de 2010

Depois do silêncio

"Depois do silêncio, aquilo que mais aproximadamente exprime o inexprimível é a música."

Aldous Huxley


2 de maio de 2010

Poema à mãe

"No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido no fundo dos teus olhos.

Porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa:
esqueceste que as minhas pernas cresceram
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim
e deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves."

Eugénio de Andrade

(óleo sobre tela de Arlete Salgado - minha querida mãe, 2004)

26 de abril de 2010

O essencial é invisível para os olhos

"Vês lá adiante os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me dizem nada. E é triste! Mas tu tens cabelos cor de oiro. Por isso, quando me tiveres cativado, vai ser maravilhoso. Como o trigo é doirado, fará lembrar-me de ti. E hei-de amar o barulho do vento através do trigo...
A raposa calou-se e olhou por muito tempo para o principezinho:
- Cativa-me, por favor, disse ela.
- Tenho muito gosto, respondeu o principezinho, mas falta-me tempo. Preciso de descobrir amigos e conhecer muitas coisas.
- Só se conhecem as coisas que se cativam, disse a raposa. Os homens já não têm tempo para tomar conhecimento de nada. Compram coisas feitas aos mercadores. Mas como não existem mercadores de amigos, os homens não têm amigos. Se queres um amigo, cativa-me."

Antoine de Saint-Exupéry, em "O Principezinho" (4ª edição, tradução de Alice Gomes)

16 de abril de 2010

1340340 Plutão

Durante a maior parte da minha vida, Plutão foi um planeta. Em 2006, foi despromovido a planeta anão, e foi-lhe atribuido o n.º 1340340 de planeta menor. Plutão leva 248 anos a dar a volta ao sol, e em 20 desses anos está mais perto do sol do que Neptuno. Agora é chamado "plutóide". Coisas da ciência! Mas o assunto aqui, não é ciência, mas antes arte, com esta música "Pluto" de Clare and The Reasons. Os agradecimentos a Cosimo por divulgar este grupo.



9 de abril de 2010

O peso da alma

"Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros."

Clarice Lispector

6 de abril de 2010

Para que servem 320 milhões de euros?

Servem, por exemplo, para deitar ao lixo sob a forma de medicamentos não usados, num ano, em Portugal! Pelo menos foi o que julgo ter ouvido nas notícias hoje na RTP!

Para se fazer alguma coisa, é preciso vontade e acção, não basta mandar para o Diário da República uma Portaria 697/2009 sobre o fornecimento em unidose, e esperar que as farmácias e as farmacêuticas adiram... (sim, elas aderem já, de boa vontade...)
320.000.000 € para o lixo, num ano, só de medicamentos? Será que ouvi mal o número? Por favor, digam-me que foi engano!

4 de abril de 2010

Em Itália também se canta o Fado

Na parte final do filme Nine, quando Guido Contini declara que não há filme, ouve-se um lindo fado cantado por uma voz masculina em italiano (julgo); parecia-me uma canção antiga. Procurei na banda sonora do filme, mas... nada. Não consegui saber o nome ou o intérprete sequer. Na net, também não fui capaz de encontrar. Mas encontrei esta italiana, Irene Fargo, a cantar fado, em português.

30 de março de 2010

Rodrigo y Gabriela

Acabei de ver a actuação da dupla Rodrigo Y Gabriela no programa do Jay Leno na Sic Radical, e já posso partilhar, pois está disponível no respectivo site. Aqui fica uma outra actuação.

29 de março de 2010

O umbigo dos bebés tem mais utilidade que o nosso teve!

Quando nascem as crianças, deviam ter iguais direitos e oportunidades. Na realidade, sabemos que não é bem assim. Embora o nosso sistema de saúde, com mais ou menos lentidão, mais ou menos erros, até não seja um mau sistema, o direito a melhores cuidados de saúde vai dependendo da "bolsa" de cada um. No caso das crianças, as oportunidades de uma melhor saúde no futuro futura estão a tornar-se mais díspares com a criopreservação das células estaminais. Neste aspecto, aconselho a leitura do texto de Isabela Figueiredo no blogue Novo Mundo, intitulado:
Entretanto, encontrei na net uma instituição chamada LUSOCORD, um "banco público de sangue do cordão umbilical, de âmbito nacional, que deverá receber as dádivas de sangue do cordão umbilical (SCU) de todas as mães que o queiram doar para uso em transplantação e investigação", ligada ao Centro de Histocompatibilidade do Norte.
Aqui fica o testemunho de uma mãe num blogue. De acordo com o comentário, nesse blogue, de Rui Pinto Reis, Relações Públicas Centro de Histocompatibilidade do Norte, as células podem ser utilizadas por quem necessite delas para transplante.O serviço é público e gratuito. Espero que seja o princípio do fim daquela segregação.

25 de março de 2010

Onde está a Justiça? Em Portugal é que não!

Ao ouvir as notícias hoje à noite, caiu-me o coração ao chão! Eu achava que a Justiça em Portugal era lenta e má, desconfiava, no entanto, face a um processo que ocorreu há uns anos com uma pessoa que me é muito querida, que ela não existia por cá. Agora tive a confirmação (TVI24):

O corrupto é condenado em 5 mil euros. O que o denunciou, é condenado a a pagar mais de 13 mil euros. Dos quais, 10 mil são para indemnizar o corrupto. Lucrou 5 mil.

Ricardo Sá Fernandes está indignado, e eu também estou!

Inacreditável! Belo caminho na luta contra a corrupção!

24 de março de 2010

Sob o luar

"A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim, mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligar as duas margens escuras do rio que vai ter ao ancião mar onde as caravelas são nossas para sempre.

Sorris? Eu não sabia disso, mas nos meus céus interiores andavam as estrelas. Chamas-me dormindo. Eu não reparava nisso mas no barco longínquo cuja vela de sonho ia sob o luar, vejo longínquas marinhas."

Bernardo Soares / Fernando Pessoa, em "Livro do Desassossego" (imagem da net)

18 de março de 2010

No Parlamento Sueco

O amigo Cosimo mandou-me este vídeo. Outro modo de estar... Não serão os suecos que estão certos?

13 de março de 2010

5 de março de 2010

Estou por aí...

Tenho andado ocupada, entre outras coisas, com isto:

Entretanto, armazeno por aqui este vídeo, que já conhecia há algum tempo, e que o Planeta Voluntários adoptou para a sua campanha Tome Uma Atitude!. Uma bela mensagem, que vale a pena relembrar!

26 de fevereiro de 2010

Autobiografia de Rosa Lobato Faria

Rosa Lobato Faria deixou-nos no passado dia 2, aos 77 anos. Escreveu esta autobiografia para o Jornal de Letras há dois anos.

"Autobiografia

Quando eu era pequena havia um mistério chamado Infância. Nunca tínhamos ouvido falar de coisas aberrantes como educação sexual, política e pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas imaginárias, príncipes encantados e animais que falavam. A pior pessoa que conhecíamos era a Bruxa da Branca de Neve. Fazíamos hospitais para as formigas onde as camas eram folhinhas de oliveira e não comíamos à mesa com os adultos. Isto poupava-nos a conversas enfadonhas e incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão outro, e deixava-nos livres para projectos essenciais, como ir ver oscilar os agriões nos regatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as árvores, passeávamos de burro, fabricávamos grinaldas de flores do campo. Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos melodias nunca aprendidas.

Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisas inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticas como sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como verbos e tabuadas. Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente mania de acreditar que isso era bom.
Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores.

E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãs trincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos aventais, a angustia de esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria (não fosse a ousadia dos pássaros só visíveis na luz indecisa da aurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor das papoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de Berlim. (As bolas de Berlim são uma espécie de ex-libris da Infância e nunca mais na vida houve fosse o que fosse que nos soubesse tão bem).

Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos nove ensinaram-me inglês e pude alargar o âmbito das minhas leituras infantis. Aos treze fui, interna, para o Colégio. Ali havia muitas raparigas que cheiravam a pão, escreviam cartas às escondidas, e sonhavam com os filmes que viam nas férias. Tínhamos a certeza de que o Tyrone Power havia de vir buscar-nos, com os seus olhos morenos, depois de nos ter visto fazer uma entrada espampanante no salão de baile onde o Fred Astaire já nos teria escolhido para seu par ideal.

Chamava-se a isto Adolescência, as formas cresciam-nos como as necessidades do espírito, música, leitura, poesia, para mim sobretudo literatura, história universal, história de arte, descobrimentos e o Camões a contar aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te, menina, que vais ser escritora.

Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, a música da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol, ay eu coitada, como vivo em gran cuidado, e ay flores, se sabedes novas, vai-las lavar alva, e o rio corria entre as carteiras e nele molhávamos os pés e as almas.

Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves.
Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde saíamos com a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, sem vontade própria, sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo, pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão com palha de aço, a espalhar cera, a puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao macho milagrosamente fresca, vestida de Doris Day, a mesa posta, o jantarinho rescendente, e nem uma unha partida, nem um cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meu amor, que felicidade! (A professora era uma solteirona, mais sonhadora do que nós, que sabia todas as receitas do mundo para tirar todas as nódoas do mundo e os melhores truques para arear os tachos de cobre que ninguém tinha na vida real).

Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido). Só seis anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que resolvi arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos. Isto não, isto não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente, isto talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim como todos os itens que à pergunta porquê só me tinham respondido porque sim, ou, pior, porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi assim é altura de deixar de ser e começar a abrir caminho às gerações futuras (ainda não sabia que entre os meus 12 netos se contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem a dizer, a revolução que nós fizemos nos últimos anos. Não meu amor: a revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem fez o quê. É preciso é que tenha sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo, quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era acreditar em mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais.

Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho, erros, acertos, disparates, generosidades, ingenuidades, tudo muito bom para aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra chave e dou por mal empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda espero ter tempo de aprender muita coisa, agora que decidi que a Bíblia é uma metáfora da vida humana e posso glosar essa descoberta até, praticamente, ao infinito.

Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia que estava só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A ganhar intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia crónicas e contos e recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63 anos, renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e vá de escrever dez romances em 12 anos, mais um livro de contos (Os Linhos da Avó) e sete ou oito livros infantis. (Esta não é a minha área, mas não sei porquê, pedem-me livros infantis. Ainda não escrevi nenhum que me procurasse como acontece com os romances para adultos, que vêm de noite ou quando vou no comboio e se me insinuam nos interstícios do cérebro, e me atiram para outra dimensão e me fazem sorrir por dentro o tempo todo e me tornam mais disponível, mais alegre, mais nova).

Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-se muito. Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história da imagem. Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se tivesse luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muito feminina, costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens. Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou religião. É um progresso enorme.

Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30, comecei a dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazer umas maluqueiras em novelas, séries, etc. Também escrevi algumas destas coisas e daqui senti-me tentada a escrever para o palco, que é uma das coisas mais consoladoras que existem (outra pessoa diria gratificantes, mas eu, não sei porquê, embirro com essa palavra). Não há nada mais bonito do que ver as nossas palavras ganharem vida, e sangue, e alma, pela voz e pelo corpo e pela inteligência dos actores. Adoro actores. Mas não me atrevo a fazer teatro porque não aprendi.

Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e 500 e é uma das coisas mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é só uma cantiga. Irrelevante.

Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para contar. Mas não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo, porque só me dão este espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é excessivo.
Encontramo-nos no meu próximo romance. "

Rosa Lobato Faria