"Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. Traz um cajado ao ombro, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente caminham os porcos, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso. Tem uma maneira estranha de olhar para longe, mesmo se esse longe seja apenas a parede que tem na frente. A sua cara parece ter sido talhada a enxó, fixa mas expressiva, e os olhos, pequenos e agudos, brilham de vez em quando como se alguma coisa em que estivesse a pensar tivesse sido definitivamente compreendida. É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pode ser nunca. Recordo aquelas noites mornas de Verão, quando dormíamos debaixo da figueira grande, ouço-o falar da vida que teve, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia, do gado que criava, das histórias e lendas da sua infância distante. Adormecíamos tarde, bem enrolados nas mantas por causa do fresco da madrugada. Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?"
José Saramago, em "As Pequenas Memórias", 2006, Editora Caminho
12 comentários:
Querida amiga!
Choro a sua morte!
Ele amava e tinha o seu avó por sábio, eu sabia, acabei de postar sobre a morte deste enorme vulto da literatura portuguesa.
Bela a sua homenagem!
Obrigada.
""O gosto pela vida é algo imprescindível para quem quer viver e ser feliz nessa vivência; a visão da morte, portanto, depende da visão da vida que temos; morrer não é o mesmo que experimentar a morte; além da separação entre matéria e alma, espírito e corpo, a morte é o ápice da realização do indivíduo, pois é somente nesse momento que ele se encontra por inteiro consigo mesmo."
Beijinhos
Ná
Bonita homenagem.
Beijo.
é apenas triste!
Rosa
Querida Benjamina,
Vou fazer link... naturalmente!
Um grande beijinho... e obrigado! :)
Vou-me repetir, pois já deixei este comentário noutros blogues.
Saramago foi, é, e certamente continuará a ser um verdadeiro "case study" para mim.
Era ateu, tal como eu, era um acérrimo defensor do Iberismo, tal como eu, e era um homem de esquerda, tal como eu.
E era, acima de tudo, um génio da nossa cultura.
Em suma, teria tudo para eu praticamente o idolatrar. Mas a verdade é que nunca gostei do senhor, da sua postura, da forma demasiado autoritária e absolutista como expunha as suas ideias. Eu até me revia na maior parte delas, mas a forma como ele as expunha é que me causavam a repulsa em relação a ele. E infelizmente nunca consegui ultrapassar uma falha minha enquanto leitor, que foi o facto de me ter deixado sempre inquinar pela antipatia que nutria pelo senhor e não ter nunca, até hoje, conseguido mergulhar na sua obra.
Mas o defeito é meu, de certeza.
Hoje, no entanto, e perante o vulto e a obra deste grande senhor da cultura Portuguesa, presto-lhe a minha sentida homenagem, e curvo-me perante a sua existência.
Pode ser que um dia, mais tarde, o veja de outra forma.
Paz à sua alma.
Benjamina,
Não vou comentar mais o passamento de Saramago, apenas dizer que fará falta.
Beijos!
Alcides
Fernanda
É belo e emotivo este texto de Saramago sobre o avô, como o é o que escreveu sobre a avó. Aliás, todo o livro "As Pequenas Memórias" é belíssimo.
Obrigada pela visita e pelo texto que aqui deixou.
Beijinhos
Manuel e Rosa
Obrigada e um abraço
Ana Paula
Obrigada por fazer link. Como não sou boa com as palavras preferi prestar homenagem a Saramago com as dele, num texto de que gostei particularmente e que tem a ver com o momento de partida.
Beijinhos
Eduardo
Sabe que o seu comentário alegrou-me. Porque o Saramago era (e continuará a ser) uma pessoa polémica, cuja frontalidade e talvez falta de simpatia em público acabou por gerar muitos ódios que sinceramente não entendo. E se não os entendo, porque me custa a entender o ódio, menos dá para entender após ler alguns dos seus livros. Por isso gostei das suas palavras de pessoa sensata, que embora não simpatize com Saramago, o respeita e não guarda ódio de estimação.
Um abraço
Alcides
Fará falta, com certeza.
Um abraço e obrigada
Gostei muito de reler Saramago aqui no Armazém, Benjamina.
Uma muito boa escolha para o homenagear.
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