"Conto-te resumidamente o que aconteceu em Abril:
Colhias flores, mas apesar de tudo senti que o medo
te ceifava os dedos tingidos de pétalas.
Ouviam-se ao longe os passos de guerra na calçada,
as pedras dos monumentos oscilavam,
as estátuas tremiam de frio,
as aves não sabiam o que eram asas
e afogavam-se no grande rio.
As janelas tinham rostos colados, cinzentos.
Quiseste fugir para longe quando te falei de amor.
Mas eis que do céu cai toda a água do mundo.
Disse-te: não tenhas medo, é Abril;
as medonhas gárgulas apenas vomitam águas da chuva.
E tu sorriste e tu sorriste, e com o teu sorriso
estendeste-me um poema vermelho."
Paulo Assim
25 de abril de 2011
24 de abril de 2011
Havia Séculos
Imagem da NASA |
e eram florestas sobre florestas escritas.
O canto cantava: era o incêndio do vento
folheando a memória da terra
essa maranha de raízes aéreas que nasciam enterrando
mais fundo as árvores anteriores;
essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas,
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;
esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz
que atrasando-se recorta
estas estranhas esculturas do tempo:
os poemas selvagens
o máximo excesso de uma rosa aquática e frágil
sempre a nascer desfiladeiros
e falésias, fendas, quebradas, ravinas
vulcões que deflagram em écrans sucessivos
Havia séculos
e o cinema dos astros
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;
punha em música a infinita noite dos versos que longamente
escutam
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão
até estes anfiteatros que os desertos invadem.
Havia séculos
e
atravessando as ruínas dessa terra quente, as páginas
de água dessa rosa alucinada
havia esse:
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso
a verso, procura ainda alguém. E assim
era de novo o início.
A grande migração das imagens — havia séculos —
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos
sem paz e sem lei, sem amos nem destino."
Manuel Gusmão, em Migrações do Fogo, Editorial Caminho, Lisboa, 2004, obtido daqui
O poeta e ensaísta Manuel Gusmão venceu o Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho, criado pela Associação Portuguesa de Escritores (APE) e Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, pela obra Tatuagem Palimpsesto. O prémio é entregue no dia 29 de Abril em Vila Nova de Famalicão.
8 de abril de 2011
Íssimo cansaço...
Edvard Munch, Night in Saint Cloud |
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossìvelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço..."
Álvaro de Campos
Música: Evanescence, Listen to the Rain
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