"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção - isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.
Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.
Altos montes da cidade! Grandes arquitecturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações - sois hoje, sois eu, porque vos vejo sois o que amanhece e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem."
Bernardo Soares / Fernando Pessoa, em "Livro do Desassossego", 18-5-1930
5 comentários:
A genialidade do costume e que sempre me tocou profundamente ... até demais.
Ontem fez 123 anos, digo fez, porque Pessoa está vivo ... bem vivo !
Olá Eduardo
Um génio muito grande dentro que tanto não cabia dentro do homem, que teve de se subdividir...
Também acho este texto profundo e tocante. A constância da mutação, em nós e no que nos rodeia.
Um génio tão grande que quase consegue tirar a luz, de todos os outros génios portugueses... enfim, sempre a tacanhice da nossa intrincada mentalidade portuguesa...
Nada como ter o apoio anglo-saxónico para movimentar uma gigantesca máquina de "propaganda", de forma a esconder todos os outros e Pessoa sabia disso. Aleister Crowley foi o seu grande promotor... ou Pessoa fez dele seu promotor... melhor dizendo.
Quanto a isto, é apenas a "visão" de Pessoa e seus fãs incondicionais... porque quem deu com os pés a Pessoa e nunca se quis encontrar com ele, foi Aleister... enfim, ele há coisas do arco da velha.
Olá Fada
Não sabia de nada disso, a não ser que Pessoa era um enorme génio:)
Beijinhos
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