24 de maio de 2010

O desassossego de Jesus em Pessoa

"Só o desassossego salva, aprendi-o com Cristo antes de o ter reaprendido com Pessoa."

Inês Pedrosa, em "Expresso/Única - No altar dos livros", de 22 de Maio de 2010


"O guardador de rebanhos VIII

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
(...)
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
(...)
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
(...)
Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?"

Alberto Caeiro, 1914 (poema completo aqui, imagem daqui)

6 comentários:

Miguel Gomes Coelho disse...

Benjamina,
é um daqueles a que, por mais que se não queira, se volta sempre.
Uma verdadeira obra-prima.
Obrigada por o recordar.
Um abraço-

Unknown disse...

Posso ler mil vezes, que o torno a ler novamente.

Abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Olá Benjamina,

Como já o publiquei faz tempo, e como é daqueles que quanto mais vezes o leio mais gosto, adorei mais esta vez :))

Por outro lado, gostei da citação que fez da Inês Pedrosa, porque sabe do que fala.

Beijinho.

Manuela Freitas disse...

Olá querida Benjamina,
Este é um dos meus poemas preferidos de Caeiro, juntamente com muitos outros poemas que Pessoa fez em seu nome e em nome de...rsrsrs
Só o desassossego, nos pode levar ao sossego!...
Beijinhos,
Manuela

Eduardo Miguel Pereira disse...

Pessoa, até nos poemas menos depressivos e mais airosos, como é o caso deste, deixa bem patente a sua constante necessidade de reflectir sobre tudo o que o rodeava. A forma interrogativa como acaba o poema é disso prova.
Foi, e ainda é, simplesmente único, quer pela genialidade artítstica, como pela capacidade de tudo analisar pelas mais diferenciadas perspectivas.

Benjamina disse...

Olá Miguel, Manuel, Josefa, Manuela e Eduardo

É um poema que vale a pena revisitar regularmente, pela sua "candura" desassossegada!
Eu ainda não quantas pessoas ao certo seriam Pessoa, mas todas elas eram de uma inteligência e "visão" do mundo e do próprio fora de série.

Também achei interessante a comparação do desassossego de Pessoa com o desassossego de Jesus.

Muito obrigada a todos e um bom fim de semana. Abraços :)