Fazem hoje 74 anos que Fernando Pessoa morreu. Tão jovem era de tempo quanto eu o sou. Mas tão mais velho de saber, de querer saber, de pensar e de não agir, de sentir e não sentir. Mas mesmo tanto sabendo, não sabia o que era o tempo que sentia.
"Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.
Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro da infância sentada entre brinquedos.
Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.
Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrónicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.
De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que há sempre uma que estará mais adiante, ainda que seja fracções de milímetro. Um microscópio exageraria este deslocamento até o tornar quase inacreditável, impossível se não fosse real. E por que não há o microscópio de ter razão contra a má vista? São considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir."
Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.
Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrónicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.
De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que há sempre uma que estará mais adiante, ainda que seja fracções de milímetro. Um microscópio exageraria este deslocamento até o tornar quase inacreditável, impossível se não fosse real. E por que não há o microscópio de ter razão contra a má vista? São considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir."
Bernardo Soares / Fernando Pessoa, em "Livro do Desassossego"
20 comentários:
Quem diria que eu viria a saber que na menina (pega lá um elogio matinal) do sorriso esfíngico e profissão de fé nas fórmulas da química, se escondia uma alma de uma sensibilidade apurada?
Ferreira-Pinto
Isto assim um elogio duplo logo à segunda de manhã... dá logo ânimo para trabalhar :) bem longe das químicas... Eu nunca entendi foi essa do sorriso esfíngico...
Obrigada
Benjamina,
que maravilha de texto.
A sua apresentação demonstra , também, a sensibilidade de quem o
publica em post.
Parabéns, por isso, Benjamina.
PS: Pelos vistos o nosso Clube está bem vivo.
Saudações.
Benjamina,
Muito obrigada pela publicação deste texto, neste dia, em que é "tempo" de recordar o Poeta, seja o que for essa coisa do "tempo", e que vai já para o nosso Clube.
Um grande abraço.
Benjamina, pedacinho a pedacinho a «sensibilidade» (artística e social) vai tomando conta deste lugar.
um abraço
Miguel
Pessoa era um verdadeiro filósofo poeta. Muito obrigada.
Um abraço
Josefa
É tempo de recordar o poeta, hoje e muitos dias. Obrigada pela honra de me integrar no clube dos desassossegados :)
Um beijo
Paulo
Um sincero agradecimento pela gentileza das suas palavras. Obrigada.
Um abraço
Olá amiga benjamina,
Fernando Pessoa.... sem palavras.
Fantástico o post!
Parabéns.
Beijinhos
Ná
Olá Fernanda
Pois é, não precisa de mais palavras mesmo, mas deu-me vontade de repetir o final:
"E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir"
Obrigada e beijinhos
Olá, Benjamina
Fantástico texto! Com os vossos contributos, o nosso Clube vai ficando realmente soberbo, e uma excelente homenagem a Fernando Pessoa.
Muito obrigada, pela parte que me toca.
E eu que ainda não fiz a minha estreia... Mas anuncio-a para breve :)
Ao reler este texto do Mestre, muitíssimo bem escolhido, fico a pensar e a sentir uma certa acalmia do desassossego, pois também eu estou longe de saber o que o tempo é. Aliás, confesso ser a temporalidade uma das minhas grandes obsessões.
Um abraço e um bom feriado :)
Bem lembrado Benjamina.
Excelente texto, onde revemos Pessoa no seu brilhantismo e "desassossego" característicos.
A qualidade dos textos e a sensabilidade, fazem deste "Armazém", um verdadeiro oásis de bom gosto, onde é sempre um prazer vir.
Continue.
OLá Benjamina,
Um texto excepcional do génio, para mim sempre será um GÉNIO e apesar de o ler há anos, sempre fico surpreendida!... Fernando Pessoa é INTEMPORAL.
Bjs,
Manuela
Olá Ana Paula
Ouvi dizer por aí que iam ser tomadas medidas drásticas, mas já vi que não foi preciso... :)
Pois, o tempo é algo que nem o pessoa sabia, mas que tão bem definiu tantos dos seus aspectos!
Obrigada pela visita, e espero que tenha tido também um bom feriado.
um abraço
Eduardo
Este texto é mesmo uma das muitas maravilhas do Pessoa. Muito obrigada pelo gentil elogio ao Armazém.
Um abraço
Manuela
Também eu fico surpreendida sempre que leio ou releio um texto de Pessoa, prosa ou poesia. Genial, quase sempre.
Beijos
Faço minhas as palavras da Manuela Freitas.
Pessoa é intemporal, daí a sua imortalidade.
Abraço.
Olá Teresa
Vocês têm razão, seus textos valem hoje como há muitas décadas.
um abraço
Muito bom excerto, que saudades de Pessoa :)
Olá Ecila
Este texto é muito bom mesmo... ou não fosse de Pessoa ;)
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